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sábado, 21 de janeiro de 2012

Intervenção psicoterapêutica com agressor conjugal: um estudo de caso

RESUMO
A violência doméstica é um fenômeno complexo, afetando famílias indistintamente. O objetivo deste trabalho consistiu em oferecer um atendimento psicológico de forma a reduzir o comportamento violento do marido à esposa. O cliente tinha o terceiro grau completo, pertencendo à classe média alta. O trabalho foi desenvolvido na sala de Psicologia da Delegacia da Mulher. Foram realizadas 15 sessões durante 6 meses. Os instrumentos de coleta de dados envolveram as técnicas Entrevistas com agressor, Questionário sobre crenças, Escala de auto-estima, Inventário de depressão, Escala de tática de conflito. As técnicas consistiram de: tarefa de casa, registro de comportamentos violentos/pensamentos que desencadeavam agressões, técnicas de autocontrole, auto-aplicação de time-out, manejo de raiva, análise de pensamentos disfuncionais, treino de assertividade, relaxamento, role-play, leitura/discussão de textos. Durante o atendimento houve um episódio de agressão à esposa, de proporção menor, se comparado a anteriores. O cliente não apresentou episódios de violência à esposa nos dois meses subseqüentes ao término da intervenção.
A violência doméstica é um fenômeno complexo, que afeta famílias de todas as raças e níveis socioeconômicos (Rynerson & Fishel, 1993; Saffioti, 1997). Pouco se fala a respeito deste tipo de violência, provavelmente pela crença de que o lar é um lugar seguro onde se pode crescer e aprender com afeto e carinho. Entretanto, na realidade o que se observa é uma permissividade para o comportamento agressivo do homem no âmbito intrafamiliar (Sinclair, 1985).
Um aspecto muito característico nos agressores é a tendência à minimização da agressão e negação do comportamento agressivo, culpando a vítima pelo comportamento emitido (Hamberger & Holtzworth-Munroe, 1999; Faulkner, Stoltenberg, Cogen, Nolder & Shooter, 1992; Sinclair, 1985; Rynerson & Fishel, 1993; Gondolf, 1993). Contribuindo para a ocorrência e perpetuação dos comportamentos agressivos do homem dentro da família estão a conivência e, de certa forma o estímulo, por parte da sociedade, à exibição de força e agressividade masculinas (Sinclair, 1985), demonstrando a visão patriarcal que esta mesma sociedade ainda possui de família. O fato de esta agressão ser dirigida estritamente à companheira revela, adicionalmente, a discriminação da sociedade com relação à mulher, principalmente  quando esta se encontra na posição de esposa (Sinclair, 1985; Saffioti, 1997). Ao se analisar o perfil do agressor, observa-se que este não faz parte de um grupo homogêneo e que uma parcela significativa apresenta baixa auto-estima, depressão e ansiedade (Hamberger & Holtzworth-Munroe, 1999).
A visão de que o comportamento agressivo é aprendido (Bandura, 1973) possibilita a elaboração de um programa de intervenção para conter o comportamento violento.
O objetivo do presente estudo consistiu em prestar um atendimento psicológico individual a um homem com um longo histórico de agressões à mulher, de modo a reduzir seu comportamento  violento tanto em freqüência quanto em intensidade.

MÉTODO
Sujeito
Orlando (nome fictício) era um homem de 52 anos, casado havia 23 anos, tendo três filhos: um do sexo masculino (24 anos) e duas jovens gêmeas (19 anos). O filho cursava faculdade particular em outra cidade e as filhas moravam com os pais. Era profissional liberal (área de saúde), pertencente à classe média alta.
Local do atendimento
Foi utilizada a Sala de Psicologia da Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) de São Carlos, descrita no Programa de Intervenção a Vítima de Violência (Williams,  Gallo, Maldonado, Brino & Basso, 2000), em que estagiários do curso de Graduação de Psicologia da UFSCar prestam atendimento psicoterapêutico a mulheres agredidas e suas famílias (Williams, 2001).
Instrumentos de coleta de dados
Para realização da coleta de dados  utilizou-se: a) entrevista individual com agressor (Williams, 1998), contendo questões sobre os seguintes tópicos: descrição do incidente que deu origem à queixa, histórico da violência, relacionamento com a parceira/filhos, estado emocional e saúde do cliente e informação sobre sua infância;  b)Questionário sobre Crenças de Violência Doméstica (Williams; Gallo; Maldonado; Brino & Basso, 2000) contendo questões do tipo verdadeiro–falso, como por exemplo: Se uma mulher apanhou, alguma coisa ela fez.;  c) Escala de Auto-Estima (Rosenberg,1965);  d) Inventário de Depressão de Beck (BID- Beck, Rush, Shaw & Emery, 1979; Echeburúa, 1997);  e) uma tradução da Escala de Tática de Conflito — CTS-2 (Straus, Hamby, Boney-McCoy & Sugarman, 1996), instrumento freqüentemente utilizado na América do Norte para medir episódios de violência. 
Procedimento
A intervenção psicoterápica foi fundamentada em uma abordagem cognitivo-comportamental, em que o trabalho de grupo de O’ Leary, Heyman & Neidig (1999) foi adaptado para o atendimento individual. A intervenção teve duração de seis meses, sendo realizadas 15 sessões de cerca de uma hora cada.
As técnicas utilizadas consistiram de: tarefa de casa (fazer relaxamento, praticar assertividade), auto-registro de comportamentos violentos (antecedente, ocorrência de violência, conseqüente), registro de pensamentos que desencadeavam agressões (acontecimentos que desencadeavam raiva, pensamentos que teve e o que fez em seguida), técnicas de autocontrole (substituição de pensamentos “quentes” que desencadeavam agressões por pensamentos “frios”, que a dissipavam),  auto-aplicação de time-out ( sair de casa quando percebia que estava perdendo o controle), manejo de raiva (discriminações de mudanças corporais), estratégias de controle de estímulo associadas ao comportamento violento (exemplo: discutir sobre dinheiro apenas em locais públicos, onde o comportamento violento não era desencadeado), análise de pensamentos disfuncionais, técnicas de combate à depressão (exercício físicos, lazer, enfrentamento de verbalizações pessimistas), treino de assertividade,  relaxamento muscular progressivo,  role-play e leitura sobre a temática da violência doméstica seguida por discussão. O material utilizado para leitura foram trechos descrevendo o “Ciclo da Violência” de Walker (1979) e sobre efeitos da punição (Sidman,1995).
Transcorridos dois meses do término da intervenção, Orlando telefonou para o primeiro autor para dar feedbacksobre seu desempenho. A obtenção de tal informação, embora não inicialmente planejada, foi utilizada como medida de follow-up.
Breve descrição do caso
Joana (nome fictício), 46 anos, mulher de Orlando, procurou o Serviço de Psicologia na DDM com a queixa de agressão física e psicológica do marido. Na ocasião, Orlando disse à esposa que ela era “louca”, que “não prestava” e que ele iria até a DDM dizer à delegada quem realmente era Joana. Após ela ter iniciado o acompanhamento psicoterapêutico (cerca de um mês), Orlando aceitou o convite para fazer psicoterapia. O atendimento a Orlando foi feito pelo primeiro autor (na época aluno do 5º ano de Psicologia) e supervisionado pela segunda autora. O atendimento à sua mulher continuou paralelamente ao atendimento de Orlando, sendo que outra estagiária atuou como terapeuta desta. As filhas foram encaminhadas para terapia individual com os demais membros da equipe. O filho se recusou ao atendimento, apesar de Joana descrever episódios de agressão do mesmo à namorada, afirmando que seu filho estava apresentando comportamentos muito semelhantes ao de Orlando: “ele está indo para o mesmo caminho”.

RESULTADOS E DISCUSSÃO
Durante as primeiras entrevistas foram coletados dados que permitiram uma descrição do histórico de violência de Orlando. O cliente relatou ter recebido uma educação rígida e autoritária, sendo vítima de violência doméstica quando criança (o pai o agredia, bem como a seus irmãos e  sua mãe). Mencionou que desde criança fora “educado” com base em castigos corporais e que “aprender era sinônimo de apanhar”.
A violência teve início no primeiro ano de casamento, quando Orlando deu um tapa no rosto de sua esposa, que ficou desacordada, sendo levada ao pronto-socorro. Orlando reconheceu que também era violento com outras pessoas, destacando um episódio em que se envolveu em um acidente de carro e acabou agredindo o motorista que atingiu seu veículo, fraturando-lhe o braço. Hultzworth- Munroe, Rehman & Herron (2000), em sua tipologia sobre homens violentos no relacionamento conjugal, identificaram a existência de um subgrupo que apresenta comportamentos violentos fora do relacionamento conjugal, tal como o cliente em questão.
Orlando apontou como principais dificuldades em seu relacionamento lidar com  a questão financeira (afirmava que a esposa não sabia administrar o dinheiro) e a falta de comunicação do casal. Verbalizava que gostava da esposa e, principalmente, admitia que agredia sua mulher, apesar de considerar inadequado tal comportamento. Seus amigos sabiam de sua agressão à esposa, mas não falavam a respeito.
As agressões físicas à mulher geravam desconforto ao cliente, que destacava não ser esta uma atitude “normal”. Culpava-se por não conseguir controlar seu comportamento violento. Relatou: O poder de provocação de minha mulher supera meu poder de agressão”. Indicou ser impulsivo e com baixa resistência à frustração: “Não é que meu pavio é curto. Eu não tenho pavio”.
Uma análise do desempenho de Orlando na Escala de Tática de Conflito (CTS-2) permitiu uma quantificação da  violência empregada e descrita por ele no ano anterior ao do atendimento. Para este trabalho foram analisados os seguintes itens do CTS-2: violência física, violência psicológica e ferimentos produzidos pelo parceiro.
A tabela a seguir permite visualizar os escores atribuídos por Orlando a si mesmo no CTS-2, e os escores atribuídos por Joana a seu marido, de forma a se avaliar a fidedignidade de ambos os relatos.


Os dados mostram que o casal apresentou atribuições próximas na escala nos itens referente à violência física e psicológica. Entretanto, em relação  a ferimentos produzidos pelo parceiro houve uma acentuada disparidade entre o auto-relato do casal, sendo que Orlando, aparentemente, minimizou este aspecto de seu comportamento violento, indicando apenas dois ferimentos, ao passo que Joana identificou 10. Tal disparidade pode ser, possivelmente, explicada pelo fato de ser muito aversivo (socialmente indesejável) admitir que se tenha ocasionado ferimentos na parceira. De qualquer modo, cabe acrescentar que a literatura afirma que marido e mulher concordam apenas moderadamente em relatos sobre a ocorrência de agressão física (Arias & Beach, 1987).
A Escala de Rosenberg (1965) indicou baixa auto-estima por parte de Orlando. Ao se analisar com o cliente as possíveis variáveis que poderiam ter influenciado  seu baixo desempenho na escala, Orlando identificou três eventos na sua história de vida: não ter passado no vestibular no curso de sua primeira escolha e, conseqüentemente, ter seguido outra carreira, além do fato de não se considerar um “marido regular”.
No inventário BID (Beck, Rush, Shaw, Emery, 1979; Echeburia, 1997) foi constatado depressão moderada. Em conseqüência, Orlando foi encaminhado para uma avaliação psiquiátrica, não tendo sido prescrito controle medicamentoso.
No decorrer do atendimento, Orlando faltou apenas três vezes, sendo duas das faltas justificadas. Esse dado evidencia o estabelecimento do vínculo terapêutico, o que é fundamental para o progresso do cliente.
Figura 1 a seguir ilustra os dados de auto-registro do cliente quanto à intensidade de sua agressão no decorrer do estudo. As categorias relativas ao nível de intensidade da agressão foram  elaboradas a partir da análise dos dados fornecidos na entrevista inicial e no CTS-2. Os dados relativos à linha de base foram referentes ao episódios agressivos ocorridos nos três meses que antecederam a intervenção.


Os dados revelam uma redução significativa da intensidade e freqüência dos episódios de violência física à esposa, bem como manutenção dos ganhos terapêuticos verificados no follow-up. Um intervalo mais longo defollow-up seria recomendado, porém tal iniciativa nem sempre é possível em trabalhos como este.
Ao longo da intervenção o cliente alterou suas verbalizações, que passaram a ser mais adequadas. Eis alguns exemplos de verbalizações inadequadas sobre violência que foram trabalhadas em terapia:
O homem não gosta de bater na mulher, é a mulher que gosta de apanhar.
Às vezes dar uns tapas é uma forma de educar.
Fui obrigado a agredir,  pois ela não mede as palavras.
Orlando reconheceu que, em muitas situações, não tinha controle sobre sua raiva e que precisava de ajuda para que seus atos violentos não atingissem proporções mais graves. Relatou ter passado a utilizar a técnica de time-out, retirando-se da situação quando percebia que perderia o controle (em uma ocasião, ficou por três dias na casa de sua mãe para acalmar-se). Paralelamente, sua mulher discutia em terapia estratégias úteis no sentido de autoproteção e prevenção de violência, sendo estimulada a dar apoio às estratégias de autocontrole utilizadas por Orlando.
Seguem-se alguns exemplos de verbalizações que indicavam mudança por parte de Orlando quanto à prevenção de  atos violentos:
Ela (referindo-se a Joana) veio com tudo, veio com pedras, mas consegui me conter.
Ao longo do atendimento houve um episódio de violência (um tapa, no terceiro mês da intervenção), sendo este episódio de proporção menor, se comparado aos episódios anteriores de agressão. Apesar desse incidente, o resultado geral é positivo tendo-se em vista o tempo do comportamento violento no núcleo familiar (aproximadamente 23 anos). Esposa e filhos corroboraram os dados de auto-registro do cliente, notando esforços em controlar seu comportamento violento e vendo-o menos agressivo.
Na última sessão, Orlando destacou: A agressão fazia parte da disciplina que recebi do meus pais, hoje eu sei que não vale a pena. Dois meses após o término do atendimento, Orlando telefonou ao primeiro autor, relatando ausência de episódios de agressão.  Apesar da eliminação dos episódios de violência física, o casal continuou apresentando dificuldades de relacionamento, com freqüentes discussões. Desta forma, foram encaminhados para terapia de casal.
O presente estudo de caso parece indicar que é possível reverter um quadro de violência conjugal existente há 23 anos utilizando-se técnicas e estratégias adequadas. Trata-se de um esforço pioneiro, pois não se encontrou relato semelhante na literatura nacional pesquisada. Mais esforços, no entanto, são necessários para pesquisas sistemáticas de variáveis úteis à intervenção. Após a experiência com este estudo de caso, o primeiro autor desenvolveu um atendimento em grupo com agressores (Padovani, Cortez & Williams, 2001).

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